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Voar

Um sonho de criança

Sonhava…. Sonhava…. Sonhava ser pássaro e voar. Ter asas. Erguê-las no ar e voar. Percorrer em menos tempo os caminhos de criança.

Era ainda muito criança. A minha cabeça estava povoada de mil sonhos fantásticos. Mas o “eleito” o prioritário, o que mais me atormentava
era “voar” – ter asas e voar!

Foi num dia cinzento e frio de fins de novembro que tudo aconteceu.

As castanhas tinham começado a despegar-se dos ouriços. Era preciso apanhá-las.

A minha tarefa fora marcada à noite, junto à lareira.

Levantei-me cedo. Comi com alguma sofreguidão as “sopas” com alho e azeite cru que a minha mãe me preparara. Vesti um casaco mais quente.
Despendurei a cestinha de verga do prego espetado na velha e enegrecida trave da cozinha. Preparei-me para a minha tarefa.

E, nesse dia seco e frio, descia eu o carreiro que terminava na Ribeira. Bandos de pardais à solta acompanhavam-me. Segredavam mais do que
nos outros dias. Era mesmo um desafio. Assim pensava eu. Entendia aquilo que desejava. Atravessei a velha e carcomida ponte de madeira que
gemeu à minha passagem. Depois subi… subi…. É que os castanheiros ficavam no cimo do monte, onde morava também o meu sonho.

Cheguei ao cimo. Decidi-me cumprir a minha principal tarefa -VOAR- Sobrevoar a Ribeira de asas abertas e saborear a minha aventura já do outro lado.

Então, pousei a cestinha ainda vazia no chão e transformei-me em pássaro. Fechei os olhos. Senti-me leve como uma pena. Ergui os braços como
se fossem asas. Enchi o peito de ar. Ergui-me de um só salto. Mas não passei do chão…

Duas lagrimas muito frias rolaram apressadas pelas minhas faces geladas que o vento “cieiro” tinha gelado. A cabeça parecia andar ao redor.
Dentro do meu coração, uma amargura amarga como uma amêndoa amarga e azeda.

Sentei-me numa fraga e chorei…

0 relógio da igreja bateu, entretanto, as dez horas. Chamava-me à realidade.

Apanhei apressadamente todas as castanhas e lentamente regressei a casa.

0 caminho pareceu-me mais longo do que nunca. O desvanecer de um sonho de criança tinha acontecido naquele dia gelado de novembro.

Só mais tarde aprendi na escola porque não tinha conseguido voar.

Folheio hoje com carinho todos os meus sonhos de então e pergunto-me:

-Afinal para que servem os sonhos? Não serão eles necessários para saber compreender a nossa vida e a dos outros?

Lourdes Graça