No dia 28 de Maio, os associados da CUMA, Clube UNESCO da Maia, num
total de 32 pessoas, percorreram as margens do rio Leça, numa
perspectiva de melhor conhecer esta parte do Património da Maia.
A indústria da moagem, nas
terras da Maia, existe há muitos anos. Os rios foram sempre motivo de
atracção e fixação de povos. O rio Leça, pelo seu caudal foi,
certamente, local atractivo e ganha-pão, ao longo de gerações.
Na demanda de construção de um estudo sobre o assunto, encontrámos
muitos dados dispersos por vasta documentação. Registos do século
XVIII são um manancial importantíssimo de informações pelos detalhes
relacionados com este Património.
Nos finais do século XIX, numa análise às indústrias da Maia, surgem
os moinhos, num total de
61, sendo 58 moinhos de água ,1 de vento e dois moinhos a vapor, com a
totalidade de 354 mós. A existência de tantas mós explica-se pela
força caudalosa do rio Leça, pois há muitos moinhos com dez, doze ou
mesmo quinze pares de mós.
Farta documentação da primeira metade do século passado ajuda-nos a
construir a história dos moinhos, uma actividade então deveras
florescente.
Os moinhos do rio Leça moíam não só para venda de farinha e troca de
milho por farinha para a fornada da broa caseira, mas também para o
fornecimento de farinha para as padarias do próprio concelho, como
para as do Porto, Foz, etc.
O cereal mais usado era o milho. E como a Maia não possuía milho em
quantidade suficiente para a laboração, tinha de ser comprado a
fornecedores ou ao Grémio da Lavoura. O Concelho da Maia insere-se no
grupo dos que compram parte dos cereais que moem e vendem o que sobra
do consumo das necessidades. Segundo documentos de requisições de
farinhas, o moleiro comprava grandes quantidades de milho.
A cidade do Porto é o primeiro mercado
consumidor das farinhas que
os moinhos do Rio Leça moíam.
O trabalho nos moinhos era uma actividade muito trabalhosa e
necessitava de muita atenção – fazer boa farinha era uma arte –
conhecer a farinha que fugia por entre os dedos era o reconhecimento
dessa arte.
A moagem era à maquia e não era uma actividade a tempo inteiro. O
trabalho no moinho alternava com o agrícola; o moleiro é ao mesmo
tempo lavrador. Os seus proventos procedem da maquia e da lavoura.
Exercia-se domesticamente: na família de moleiros todos são
trabalhadores e quando há assalariados, o preço do trabalho é o dos
criados de lavoura, com o qual tem notáveis analogias. O moleiro e o
lavrador, numa comunhão de actividades, são duas faces da mesma moeda.
A moagem era artesanal, sem a introdução de capitais necessários à
industrialização do sector. Situação, aliás bem diferente da que se
verificava já em Lisboa.
Este carácter artesanal foi-se atenuando com o tempo. Porém, nos
finais do século XIX a introdução de máquinas a vapor vieram
transformar esta indústria tão importante para a economia do Concelho.
São colocadas máquinas a vapor em 6 moinhos: 3 moinhos, em Couço e 3
em Águas Santas.
O trabalho de moleiro era sazonal, dependendo da força motriz do leito
do rio; moía sempre no Inverno e nos meses de verão, para não morrer
de fome voltava-se para a terra, sempre generosa e disponível para
alimentar os braços trabalhadores. Era assim um trabalho de
complementaridade. “Na família de moleiros todos são lavradores e
quando há assalariados, o preço do trabalho é o dos criados de
lavoura, com o qual tem notáveis analogias”, diz um relatório sobre o
assunto.
A nossa visita, a que outras se seguirão, prendeu-se apenas com os
moinhos de Águas Santas e Milheirós.
Após a visita, constatámos que a maior parte deste Património, que
contém em si histórias de vida de gerações sucessivas, tem vindo a ser
destruído com tempo. Esta actividade está extinta e a estrutura
física dos moinhos, em vias de desaparecer completamente, pelo
abandono a que tem sido votada.
“As ruínas do tempo são tristes mas belas, as que as revoluções trazem
ficam marcadas com o cunho solene da história. Mas as brutas
degradações (…) esses profanam, tiram todo o prestígio.”
São impressões de Almeida Garrett à vista do abandono do património
arquitectónico de Santarém. Também nós sentimos tristeza e
incompreensão face às ruínas e destruição daquilo que foi uma
esplêndida casa, um magnífico jardim e uma fonte de produção de
riqueza, os Moinhos do Trigo, propriedade de dois vultos da cultura
portuguesa dos finais do séc. XIX e primeiro quartel do séc. XX: D.
Carolina Michaelis de Vasconcelos e Joaquim António da Fonseca
Vasconcelos.
Neste tempo, o Lugar do Moinho do Trigo era um lugar aprazível,
atravessado pelas águas cristalinas do rio Leça, onde cresciam
variedades de peixe que, na hora das cheias eram pescados à cana ou
mesmo com balde, tal era a fartura, e constituíam, com o pão de milho,
a base da alimentação dos habitantes, que também faziam das pedras do
rio lavadouro. No verão uma levada ou catarata era a delícia para o
mergulho. O acesso aos moinhos era todo ele um espaço idílico, coberto
por uma ramada de uvas; a ponte, com uma entrada subterrânea para a
levada , possuía como que um miradouro de forma arredondada e com um
alto peitoril nas
extremidades.
Fotografias e outros documentos da época mostram
a importância destes espaços não só no
plano afectivo e familiar, mas também como lugares de investigação, de
estudo e de produção de
ciência.
Carolina e Joaquim gostavam de dar longos passeios ao ar livre e de
brincar com os netos nos jardins da sua casa de férias e de
fins-de-semana em Águas Santas. Carolina, a primeira mulher professora
universitária em Portugal, muitas vezes, passava horas e horas a
trabalhar no seu gabinete, mas quando se sentia fatigada do estudo
tornava-se uma exemplar dona de casa. Punha o seu avental, acendia o
forno, preparava a massa e algum tempo depois deliciava a família com
os bolos que carinhosamente preparava.
Pelo talento e competência foi doutora honoris causa pelas
universidades de Friburgo e Hamburgo, professora de filologia na
universidade de Coimbra, sócia honorária do Instituto de Línguas Vivas
de Berlim, presidente honorária do Conselho Nacional das Mulheres
Portuguesas e com Maria Amália Vaz de Carvalho foi a primeira mulher a
entrar para a Academia das Ciências.
O trabalho de Joaquim de Vasconcelos desenvolveu-se nas áreas das
artes e da arqueologia, tendo deixado inúmeros estudos pioneiros da
História da Arte e da Música. Membro da Sociedade de Instrução do
Porto, bateu-se pela reforma do ensino ao propor o desenvolvimento de
novos métodos pedagógicos, a revisão dos materiais didácticos e ao
promover a instrução nos domínios da ciência da arte e da indústria.
Foi o ideólogo de duas importantes exposições realizadas no Porto com
uma missão pedagógica: a Exposição das Indústrias Caseiras de 1881 e a
Exposição de Cerâmica de 1882. Com Soares dos Reis, Henrique Pousão,
Marques de Oliveira e outros fundou o Centro Artístico do Porto com o
objectivo de contribuir para o desenvolvimento das belas artes, mas
também de intervir, fazendo uma análise crítica ao estado das artes em
Portugal.
As fotografias aqui apresentadas mostram o contraste entre o ontem e o
hoje dos espaços em que decorreu a história de vida que acabámos de
referir, histórias de duas vidas unidas pelo amor: o amor à vida e o
amor à ciência.
Esta jornada enquadrou-se no artigo 3º., alínea h (fazer o
levantamento do património cultural da Maia) dos estatutos do Clube
Unesco da Maia.